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Não sabia o quão recente foi o acesso de muitos portugueses a água potável segura e a saneamento adequado

Depois de uma visita a Portugal para fazer o ponto de situação em termos ambientais, David Boyd, o relator especial para os Direitos Humanos e o Meio Ambiente das Nações Unidas, partilha as conclusões que mais o surpreenderam, mas também linhas de apoio para que o país se torne exemplar.

Visitou Portugal depois de um verão que foi muito difícil. Qual o aspeto que mais o marcou?

Fiquei profundamente impressionado com os impactos cumulativos da crise climática em Portugal – a seca, os incêndios e a onda de calor –, que pareciam quase apocalípticos.

Havia alguma política, prática ou desafio português que não fosse do seu conhecimento, e que tenha sido descoberta na sua visita?

Muitas. Em relação à pergunta anterior, não me tinha apercebido até aterrar da magnitude do desafio de adaptação climática que Portugal enfrenta. Mas também desconhecia o progresso de Portugal na transição para as energias renováveis, incluindo a reforma antecipada das duas últimas centrais elétricas a carvão. Por outro lado, não sabia o quão recente foi o acesso de muitos portugueses a água potável segura e a saneamento adequado.

Como é que a exposição de Portugal às consequências das alterações climáticas se compara com a de outros países, europeus ou não?

De todas as nações da Europa, Portugal está entre as que estão a ser mais duramente atingidas pela crise climática. Contudo, em comparação com pequenos Estados insulares e nações vulneráveis ao clima como o Paquistão e o Bangladesh, Portugal tem muito mais resiliência e recursos para investir na adaptação necessária.

Como deveria essa adaptação funcionar em termos de políticas ou prioridades reais?

As prioridades de adaptação incluem pontos como a substituição de espécies de árvores exóticas (por exemplo, eucaliptos) por espécies nativas que são mais tolerantes à seca e representam menos risco de incêndio; a diversificação da paisagem com florestas, quintas e comunidades intercaladas; e a adoção de tecnologias eficientes em termos de água, especialmente para irrigação.

“Os impactos [da crise climática] recaem desproporcionadamente sobre pessoas em situações vulneráveis, tais como pessoas que vivem na pobreza”

É muito comum medir estas consequências em termos do seu impacto económico ou político – o aquecimento global vai custar-nos x euros, etc. – mas há também questões sociais e de direitos humanos que se colocam, certo?

A crise climática tem impacto nos direitos à vida, saúde, alimentação, água, direito a um ambiente limpo, saudável e sustentável, direitos culturais e os direitos da criança. Estes impactos recaem desproporcionadamente sobre pessoas em situações vulneráveis, tais como pessoas que vivem na pobreza. Por exemplo, as pessoas com menos posses têm mais dificuldade em manter-se frescas nas ondas de calor e em aquecer as suas casas no inverno. Fiquei surpreendido ao saber que a juventude portuguesa está entre as mais assustadas do mundo por causa da crise climática. O caso dos seis jovens portugueses contra Portugal e outras 32 nações europeias que alegam que o fracasso dos governos em reduzir as emissões viola os seus direitos humanos será ouvido pela Grande Câmara do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no final deste ano e a resposta do Tribunal será muito interessante.

Uma das ideias que partilharam enquanto aqui estiveram foi que Portugal é um legislador muito forte em termos de políticas ambientais, mas a implementação não é assim tão forte. Pode dar-nos alguns exemplos?

Os vários casos contra Portugal pela Comissão Europeia são a melhor prova de uma implementação inadequada (ver caixa).

Como pensa que os governos, e não apenas os portugueses, podem ultrapassar este obstáculo e passar à ação?

Têm de ser mais dedicados mais recursos à ação climática e ambiental baseada nos direitos humanos, uma prioridade que deve ser constante.

Considera já ser tarde para dar essa prioridade e dedicação ou é sempre melhor avançar em vez de ficar parado?

É definitivamente melhor seguir em frente! A ação agora ainda pode salvar vidas, por exemplo, melhorando a qualidade do ar.

A nossa revista especial foca o papel que as entidades locais, como as câmaras municipais, têm na proteção do ambiente e também facilitam e permitem essas ações nas pessoas. Em primeiro lugar, acredita que este é um papel importante? Em caso afirmativo, porquê?

Muito importante porque a qualidade do ar, a qualidade da água, os transpor- tes e a gestão de resíduos dependem todos da ação local.

Falando da gestão de resíduos. Como é que isso é importante para o ambiente e como podemos fazer mais, alcançar mais, neste campo?

A gestão de resíduos é uma área onde Portugal está atrasado em relação a muitas nações europeias, por exemplo, com a sua baixa taxa de reciclagem.

Como pensa que isso pode mudar? Existe algum estudo de caso que deva ser tido em conta pelo nosso país?

A cidade do Porto está à frente do resto de Portugal, pelo que as suas inovações poderiam ser facilmente imitadas. Quanto aos líderes na União Europeia, a Eslovénia passou rapidamente de ter uma das mais baixas taxas de reciclagem para uma das mais altas, através de investimentos inteligentes em infraestruturas e educação pública. Globalmente, a província canadiana da Colúmbia Britânica tem um excelente sistema que é operado e pago pelas empresas que produzem e importam materiais, incluindo vidro, metal, papel e plástico. A lei exige que um mínimo de 75% de todos estes materiais sejam recolhidos e reciclados, e a indústria está a cumprir esse objetivo.

“[Em matéria de reciclagem], a cidade do porto está à frente do resto de portugal, pelo que as suas inovações poderiam ser facilmente imitadas”

A água é também uma questão muito importante para Portugal. Temos uma grande extensão da área costeira e estamos a começar a experimentar grandes períodos de calado. Que boas práticas devem ser tidas em conta ao lidar com a gestão da água?

O maior utilizador de água em Portugal, de longe, é o setor agrícola. As formas mais avançadas de irrigação e as mudanças nas culturas para culturas menos exigentes em água estão entre as mudanças que podem ser feitas.

Depois da sua visita ao nosso país, tivemos algumas grandes inundações que tiveram um impacto especial nas nossas grandes cidades – Lisboa e Porto. Como podem as cidades preparar-se para este tipo de eventos climáticos?

Há algumas decisões maravilhosas que as cidades podem tomar, utilizando soluções baseadas na natureza. Por exemplo, reduzindo as áreas pavimentadas para que a água possa ser naturalmente absorvida pelo solo. As árvores e arbustos também ajudam, pelo que tornar a cidade mais verde é bom para a biodiversidade, para a qualidade do ar e da água.

16 processos em curso

Quando David Boyd fala de implementação inadequada da legislação ambiental por parte de Portugal, fá-lo com base numa lista de processos interpostos pela comissão europeia ao nosso país. Segundo as bases de dados da entidade, serão 16 as ações em curso, em áreas como a gestão de água, de resíduos, da Qualidade do ar e até da poluição sonora. O mais antigo data de 2002 e prende-se com a descarga de águas residuais urbanas em zonas sensíveis. Já um dos mais recentes está relacionado com a falta de transposição integral de uma diretiva europeia sobre os plásticos de uso único.

Os recados de David Boyd ao governo português

Ainda que Portugal mostre “Boas práticas” em diversas áreas, há desafios “urgentes” a ter em conta para ser exemplar em termos ambientais. Este é um resumo das conclusões apresentadas à assembleia geral das nações unidas.

A escassez de painéis solares instalados ao longo da paisagem nacional foi para David Boyd “uma surpresa” tendo em conta a capacidade de produção do país.

O que encontrou a mais foram “monoculturas extensivas de eucaliptos”, o que leva a uma necessidade de gestão do território que aumente a resiliência e diminua o risco de incêndio.

No campo dos incêndios, a preocupação prende-se também com o facto de quase um em quatro municípios não ter um plano de defesa da floresta contra incêndios atualizado, especialmente em áreas rurais mais envelhecidas.

A questão dos stocks de sardinha também é um assunto para Boyd, devido “aos anos recentes de pesca em demasia, fraca gestão de recursos” e também da dependência de certas populações desta atividade.

Um dos deveres do governo é “acelerar a implementação de uma estratégia de economia circular, com ênfase no aumento da taxa de reciclagem”.

Ao mesmo tempo, deve “priorizar a saúde das crianças quando adereçar os assuntos das substâncias tóxicas e todas as formas de poluição”.

A questão das minas de lítio é um tema claro para Boyd, que afirma que “um registo de liderança” de Portugal na exploração de carvão “não é conciliável (…) Com a aprovação de uma mina massiva a céu aberto”.