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“Precisamos de mudar o nosso paradigma mental, simplificar processos, prestar contas”

Em entrevista, António Costa e Silva, considerado o “pai” do PRR, acredita que o caminho percorrido em conjunto com o poder local é dos fatores que mais contribuirá para o sucesso do plano. Mas ainda há muito a mudar para fazer de Portugal um país mais resiliente.

Está a fazer um ano desde que o PRR foi apresentado oficialmente, mas está em execução há cerca de seis meses. Qual é o balanço que faz deste período de aplicação em conjunto com o poder local?
Durante estes seis meses de execução, a intervenção que as autarquias e o poder local têm tido é um pilar fundamental para que o PRR funcione bem. Desde logo, no programa de saúde: temos mais de 1.300 milhões de euros nesta área. Já foi aprovada a decisão que associa também as autarquias e o poder local à discussão relativamente às políticas de saúde e, sobretudo, a inserção dos Centros Regionais de Saúde. Uma das coisas fundamentais que a pandemia colocou em cima da mesa é que temos que apostar e reformular o Serviço Nacional de Saúde. Nesse sentido, foi feito um esforço para trazer sempre as autarquias, e estarem associadas, com as Direções Regionais de Saúde, à discussão sobre o impacto do PRR, especialmente na questão dos cuidados de saúde primários. Há cerca de 28 novas Unidades Móveis de Saúde que vão ser distribuídas pelo país. E tem que se ter muita atenção ao sítio onde ficarão colocadas e a forma como esta Rede de Cuidados de Saúde Primários será reconfigurada. Há também uma atenção particular aos centros de saúde, que têm de ter meios de análise, de radiologia e ou¬tros que os tornem mais eficientes e operacionais. Se for assim, abranda toda a pressão sobre os Serviços de Urgência dos hospitais.

Quando fez a visão estratégica, quais foram as dimensões em que percebeu que a União Europeia estava a imprimir mais exigência? Em que queria que os países dessem o passo extra?
Ao contrário da reação muito apática na crise financeira de 2008, agora, com o Fundo de Recuperação e Resiliência e os planos que advêm para cada um dos países, as exigências da União Europeia são unas e concentram-se nos três pilares da Resiliência. Isso implica tornar muito mais eficientes as funções clássicas na saúde, habitação, educação, ciência, e da tecnologia, para criar as bases para termos economias competitivas. Há exigências fundamentais ao nível da digitalização, que pode ser transformadora em termos do tecido económico empresarial, da transição energética e da luta contra as alterações climáticas. Há um ponto que me parece muito importante e que a pandemia colocou em cima da mesa: o modelo de Governance das nossas sociedades. Não conseguimos governar sociedades como a nossa, sociedades do conhecimento cada vez mais complexas, com o modelo tra¬dicional hierárquico, de cima para baixo. Temos de ter um modelo que funcione de baixo para cima, que traga as autarquias, o poder local, as plataformas de cidadãos e que consigam ter uma participação ativa.

A dimensão da habitação tem uma das maiores dotações do PRR, na ordem dos 2.300 milhões de euros. Sente que é uma das dimensões onde Portugal está para trás e precisa de investimento ou nota que nas outras componentes também haverá alguns aspetos e problemas que estão a par da habitação?
A habitação é um dos grandes problemas que o país tem. Desde logo, para as nossas gerações mais jovens, porque não têm acesso à habitação e não vamos conseguir fixar os jovens, sobretudo os que têm mais talento, se não resolvermos este problema. Todo o investimento aí é pouco. Tudo depende da capacidade de nos organizarmos, de fazermos os investimentos nas áreas em que são necessários e de responder a essas necessidades. A outra área que também precisa de investimento e que tem grande impacto para o poder local é a das respostas sociais. Não só na re¬novação dos equipamentos sociais das autarquias e do terceiro setor, o setor social, mas também na luta contra a po¬breza e pela integração. As autarquias são absolutamente fundamentais nesses aspetos, porque são quem conhece melhor estes problemas, são elas que estão perto dos cidadãos.

Houve uma pressão da União Europeia para que pensemos as alterações climáticas de uma forma mais ativa. E isso vai pôr as autarquias numa posição onde elas ainda não tinham chegado. Sentiu esse empurrão?
Senti, mas não é uma questão de sentimento, é uma questão dos factos. Somos um dos países que podem ser mais afetados pelas alterações climáticas. O sistema costeiro português manteve-se estável nos últimos 3000 anos. Mas, a partir do fim do século passado, com o avanço do nível do mar e a aceleração das alterações climáticas, 25% dos 950 quilómetros da costa portuguesa estão em situação de erosão. E é na faixa litoral que estão 80% da população e 85% do PIB. Torna-se necessário repensar o país, ter um modelo “deslitoralizado” do território. O que se passa nas cidades de média dimensão tem um papel muito importante para o desenvolvimento do país: em Bragança, Vila Real e Chaves, o Instituto Politécnico de Bragança teve um papel extraordinário na área de tecnologias agrícolas. O município do Fundão é um exemplo extraordinário de um microcosmo de tecnologias digitais.
Também não podemos esquecer que o PRR tem um grande programa de des¬carbonização das indústrias, de eficiência energética nos edifícios e era bom que as autarquias acompanhassem os programas que estão nos seus territórios.

Ao contrário da reação muito apática em 2008, as exigências da união europeia para esta crise são unas e concentram-se nos três pilares da resiliência

A coesão territorial pode ser uma causa e um efeito do PRR?
Pode, mas para que isso seja medido temos de ter indicadores territoriais. Uma das grandes lutas que temos no âmbito da Comissão Nacional de Acompanhamento do PRR é fazer-se uma espécie de georreferenciação dos indicadores. Queremos saber, não só o que se pas¬sa nas NUTS III, mas nas NUTS II e, se possível, ir aos concelhos e territórios.
Aí, as resistências são grandes porque o país não está habituado a pensar dessa maneira. Porém, sem indicadores, sem saber o que está a acontecer nos vários territórios, é impossível lutarmos por uma maior coesão territorial.

Foram apresentadas várias críticas ao PRR e ao papel que dava ao poder local, nomeadamente por parte da Associação Nacional de Municípios Portugueses e de alguns autarcas. Qual é a sua visão em relação a essas críticas? Acha que o PRR podia ter ido mais além?
As críticas são sempre bem-vindas. O PRR não é perfeito, foi apresentado pelo Governo e negociado com Bruxelas, e é o que é. Mas muitas das críticas feitas não têm em atenção que o PRR foi desenvolvido para responder a desafios da própria Comissão Europeia, que estabeleceu muito bem três pilares. Por isso, algumas dessas críticas ultrapassam o nosso âmbito de atuação, mas podem ser acolhidas no PT2030, que está agora a ser negociado. O que me preocupa mais do que tudo isso é a nossa capacidade de executar, quer o PRR, quer o PT2030. O máximo que o país executou, até hoje, em termos de fundos estruturais, foi na ordem dos 2.500 a 3.000 milhões de euros por ano. Nós vamos ter mais do dobro. Se mantivermos o mesmo ritmo lento, a mesma burocracia e morosidade nas respostas às interações com o tecido empresarial e poderes locais, vamos ter muitas dificuldades. Precisamos de mudar o nosso paradigma mental, simplificar processos, prestar contas.

O que me preocupa mais do que todas as críticas ao plano é a nossa capacidade de executar os fundos, quer do PRR, quer do PT2030.

O que seria Portugal num cenário em que o PRR é aplicado na totalidade, em tempo útil, sem burocracias?
Uma das coisas que me deixa triste é saber que o país tem todas as condições e valências para ser um país muito melhor. Ainda temos 7.000 milhões de euros do PT2020 que não foram executados. Ao combinar isso com o PRR e o PT2030, é realmente uma oportunidade extraordinária. Mas isto exige um Estado muito mais ágil e eficaz e a reformulação de procedimentos. Algumas das grandes reformas de que o país precisa estão previstas no âmbito do PRR. Uma delas é a qualidade e sustentabilidade das finanças públicas. A justiça económica e fiscal é outra grande reforma para criar um melhor clima de negócios, fundamental para as empresas, para o desenvolvimento tecnológico e para a inovação. Depois, temos a grande reforma do licenciamento. Muitas vezes, as coisas ficam paradas devido ao licenciamento e, quando há interação entre as empresas e o Estado, muitas vezes há a intervenção de oito órgãos da administração pública, cada um deles dá um parecer, não há decisão e os projetos ficam parados. Assim não podemos funcionar. A minha perspetiva é de que, com a digitalização, haja uma transformação de todos os processos. Temos de mapear todos os projetos de trabalho e de decisão, digitalizar o fluxo de informação, ter mais transparência e agilidade nas respostas. Se conseguirmos fazer isso, podemos ter um país muito mais desenvolvido no fim desta década.

Um plano que tem de contar com o Poder Local

António Costa e Silva é engenheiro, professor universitário e gestor. Com uma longa carreira dedicada ao setor da energia, foi convidado em 2020 pelo Governo português para preparar a visão estratégica para o plano de recuperação económica pós-pandemia, as linhas gerais pelas quais o Governo se guiou para apresentar a sua proposta de Plano de Recuperação e Resiliência a Bruxelas. Lidera agora a Comissão Nacional de Acompanhamento do Plano de Recuperação e Resiliência, o órgão que tem como objetivo monitorizar a execução destes fundos, bem como a qualidade dessa execução.